quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O Início do Pesadelo

Dezembro de 1975, Imga tinha então onze anos de idade. O sorriso sempre presente no seu rosto, com que presenteava todos aqueles que cruzavam o seu caminho, desvanece-se repentinamente, dando lugar a uma torrente de lágrimas e gritos de desespero, sufocados apenas pela sinfonia trepidante e estridente das armas de fogo, daqueles que se degladiavam na inconsciência da soberba e do poder.



O caminho de regresso a casa era impensável. Era o periodo de férias do Natal. Imga como de costume, deslocara-se ao mercado a pedido da mãe, levando consigo seu irmão Atot, que a acompanhava sempre nessas andanças enquanto, sua mãe, permanecia no recanto do lar com seus outros três irmãos infantes ainda : Ainos, Yzus e Oigres.



Subitamente, o edifício do mercado é atingido pelo arremesso de bazucas e granadas, num gesto alucinado, Imga arrasta Atot, por entre a chuva de balas e pó em direcção à casa da irmã mais velha, Asle, que vivia a poucos metros dali.



Asle tinha uma bebé com oito meses, Aivlis, e estava grávida de cinco meses de outra menina que viria a chamar-se Aluap. Para se protegerem das balas, pois a casa estava cercada por militares, tentavam esconder-se debaixo das camas mas, a aflição, o medo, o desespero eram asfixiantes e não havia como proteger Asle pois, a sua enorme barriga não lhe permitia meter-se debaixo da cama...



Foram momentos extenuantes de aflição, incerteza e dor. A falta de notícias de seus pais, irmãos e demais familiares, toldava o semblante de Imga de uma agonia misto de revolta e dor, mesclada de impotência. Estariam ainda vivos?

A comida escasseava, a água era quase nada. Qualquer movimento, o menor ruido servia de pretexto para que os disparos chovessem em direcção à casa... ninguem se podia mover, nem mesmo para ir à casa de banho...

Foram horas intermináveis! As persianas cerradas, as janelas e portas trancadas, não permitiam discernir entre o dia e a noite. Vencidos pela dor, a fome e o cansaço, adultos e crianças adormecem...

Entretanto, sempre alerta, Imga apercebe-se que o barulho dos tiros estava mais disperso. Anel, prima de Imga, lembra-se de um tacho de caldeirada de peixe que ficara na cozinha do quintal. O risco era grande... Quem se arriscaria a sair do esconderijo, atravessar o quintal até à cozinha, para alcançar a famijerada caldeirada?

Anel, como sempre, devota à família, tomou a si essa responsabilidade. Mas, Imga, vivaça como sempre e, do alto da sua inocência, vendo que mais ninguém se decidia, estendeu a sua mãozinha a Anel e puxou-a em passo de corrida, em direcção ao quintal...

Ao sairem da cozinha de tacho nas mãos, uma voz entoa em tom ameaçador... Imga, ergue os seus olhos no sentido da voz e, sem deixar transparecer o turbilhão de emoções que lavavam a sua alma infantil, sussurra -"...os meninos têm fome, viemos apenas pegar este tacho..."-, o desconhecido de arma empunhada na sua direcção interpela -"... quem mais está aí?"-, Imga responde,-" ...ninguem..."

Liberadas pelo seu algoz, retornam à casa principal juntando-se aos demais... Os tiros recomeçam e ouvem-se gritos e o barulho de algo a cair ao chão nas imediações...

As horas passaram, as trocas de tiros cessaram...
De repente, alguem bate à porta... o medo paraliza todos os que ali estavam, temia-se o pior...
Entretanto, por entre as batidas ouve-se uma voz, -"... pessoal, respondam por favor, estão todos bem?"

Ao ouvir a voz do pai, Imga corre em direcção à porta e, num misto de tristeza e alegria entre lágrimas e sorrisos constatam que estavam todos vivos pois, de ambos os lados tinha-se temido o pior.

Era noite de Natal. E que Natal! Não haveria Ceia, nem Presentes, nem Luzes nem Cânticos. Apenas, a unidade de uma família, em torno da vida que esteve prestes a ser-lhes roubada.
Nos quintais da vizinhança, jaziam corpos de militares. Nas ruas os feridos, os mortos... eram esses os presentes dos Moçamdenses, naquele fatídico Natal de 1975.

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